O radioamadorismo é sustentável no Brasil?

by Rafael Beraldo

Numa trilha pelo Espinhaço no carnaval de 2022, me dei conta de que um rádio teria feito toda a diferença. Estávamos em um grupo com cerca de quinze pessoas e houve momentos de algum estresse por não podemos nos comunicar facilmente. Foi assim que resolvi tirar a licença de radioamador no ano passado, comprei meu primeiro rádio (um Baofeng UV-5R) e tenho estudado e aprendido cada vez mais sobre a prática. Aliás, o meu indicativo é PU2URT (de Urutu Branco – leitores do Guimarães Rosa entenderão); me encontrem no QRZ.com!

Em Ilha Grande, fazendo a volta munido do meu fiel Baofeng
UV-5R.

Como atualmente moro em Campinas, tenho acompanhado as conversas nas repetidoras locais, como as Chapéu de Couro (146.910 MHz) e de Palha (439.900 MHz), em Amparo, as repetidoras do Clube de Radioamadores de Americana (CRAM; 146.770 MHz) e as raras conversas que escuto na repetidora do Capricórnio (146.810 MHz), localizada na Serra das Cabras, próximo do Observatório Municipal Jean Nicolini. Aliás, fiz um compilado das frequências que costumo ouvir para uso no CHIRP para quem estiver interessado em configurar seu rádio para ouvir e transmitir nas repetidoras da região. Baixe aqui.

Uma das coisas que mais tem me chamado a atenção no radioamadorismo é a (aparente, pelo menos) falta de pessoas jovens ou novatos. Quer dizer, a prática me parece dominada por pessoas mais experientes, que aprenderam o rádio há algumas décadas e novos radioamadores não parecem estar entrando no hobby. Minhas elucubrações me levaram a crer que a facilidade de comunicação via Internet, juntamente com a presença universal dos celulares, foram um tipo de tiro de misericórdia no radioamadorismo. Isso explicaria a falta de tráfego nas repetidoras e no simplex, ou seja, comunicação ponto-a-ponto entre dois rádios.

Mas, será mesmo que esse é o caso? Que métricas podemos consultar para obter uma imagem do radioamadorismo no Brasil? Neste post, vou tentar obter alguns dados no site da Anatel para caracterizar quem e quantos são, onde vivem e qual a idade dos radioamadores.

Uma hipótese e algumas perguntas

A minha hipótese sobre o estado do radioamadorismo no Brasil foi exposta acima: minha breve experiência parece indicar que há poucos novos radioamadores, de modo que essa poderia ser uma prática que está fadada a deixar de existir no Brasil. Rádios são equipamentos caros e as repetidoras usadas no VHF (faixa dos 2m) e no UHF (faixa dos 70cm), que me parecem ser as mais acessíveis para os novatos, exigem constante manutenção e alguém ou uma associação que pague a conta. Com menos radioamadores na cena, como essa infraestrutura iria se manter?

Assim, queria responder pelo menos as seguintes perguntas:

Nem todas elas puderam ser respondidas satisfatoriamente. Além disso, de acordo com os dados limitados que consegui levantar, parece que eu estava errado em supor que há poucos novos radioamadores. Vamos aos números.

Dados oficiais da Anatel

O primeiro lugar onde podemos obter e visualizar dados é no próprio site da Anatel, em Painéis de Dados → Outorga e Licenciamento → Estações Licenciadas. Lá é possível filtrar a exibição apenas para as estações licenciadas de radioamador, o que nos dá um número total de 42.516 licenças. Para fins de comparação, há cerca de dez mil estações de rádio no Brasil segundo o Ministério das Comunicações.

Façamos algumas contas de padaria colocar esse número em perspectiva. A proporção da população que tem licença para operar estações de radioamador é de aproximadamente 0,02% (segundo o IBGE, estávamos estimados em 213,3 milhões em 2021). Isso significa que uma a cada 5.000 pessoas está outorgada. Nos Estados Unidos, um país com dimensões e população relativamente comparáveis, a quantidade de radioamadores é dez vezes maior: há quase 800.000 licenciados, ou cerca de 0,233% da população.

Mas como os radioamadores nos distribuímos pelo território nacional? O mapa abaixo, extraído do site da Anatel, indica que há uma concentração de radioamadores no Sudeste, no Sul e em estados do Nordeste (cores escuras indicam maior densidade):

Há cerca de dez mil radioamadores em São Paulo, metade disso no Rio de Janeiro e
cerca de três mil em Minas Gerais; o Nordeste também se
destacada.

Em valores numéricos:

Estado Estações
São Paulo 10.800
Rio de Janeiro 4.685
Minas Gerais 3.506
Paraná 3.299
Rio Grande do Sul 3.239
Santa Catarina 2.748
Ceará 2.107
Paraíba 1.875
Rio Grande do Norte 1.553
Pernambuco 1.244
Distrito Federal 1.189
Bahia 1.168
Goiânia 699
Piauí 622
Mato Grosso do Sul 607
Espírito Santo 587
Pará 462
Sergipe 370
Alagoas 366
Maranhão 296
Mato Grosso 275
Amazonas 237
Rondônia 229
Amapá 126
Roraima 105
Tocantins 66
Acre 58

Até o momento, conseguimos obter os dados para duas perguntas: a quantidade e localização dos radioamadores. Entretanto, o site da Anatel não traz dados pessoais, em especial a idade dos operadores. Para isso, teremos que usar um proxy, ou seja, algum outro dado que possa estar correlacionado com a idade dos radioamadores.

Qual a idade dos radioamadores?

Essa pergunta se provou impossível de responder – a não ser que pesquisássemos os 42.000 radioamadores, um a um. Apesar disso, talvez seja possível estimar a idade dos radioamadores a partir da obtenção do primeiro registro de estação para cada indicativo. A hipótese é que, em havendo uma concentração de registros em anos passados e menos em anos recentes, há de se esperar que a idade dos radioamadores siga essa tendência.

A página de consulta de indicativos da Anatel nos permite inserir um indicativo e obter dados como a localização das estações a ele associadas, a data de validade da licença de cada estação, o nome do autorizado, a sua classe de radioamador e, crucialmente, a data de primeiro registro das estações. Por exemplo, a minha data de inclusão é 15/07/2022 e a data de validade é 23/06/2042. Estou presumindo, aqui, que ao renovar o indicativo, a data original de inclusão da primeira estação será mantida.

O problema é que essa informação deve ser obtida de maneira manual, ou seja, nós teríamos que digitar os indicativos um a um. Felizmente, foi possível confeccionar uma série de comandos no terminal do Linux para automatizar a tarefa. De maneira bastante resumida, primeiro a lista de indicativos foi obtida no site da Anatel. Então, um robô baixou a página correspondente a cada indicativo. Finalmente, foi possível extrair o ano mais antigo de cada página, produzindo-se assim os dados que discutiremos a seguir. A metodologia completa está anexada após a conclusão deste pequeno artigo.

Primeiros registros de cada indicativo

O gráfico abaixo (clique aqui para uma versão maior) apresenta o número de primeiros registros de estação por ano, desde 1987. Podemos ver que o maior número de registros, ao contrário do que minha hipótese supunha, não se concentra nos anos iniciais; na realidade, observamos exatamente o contrário! Parece que há uma distribuição relativamente uniforme dos registros, então não é possível dizer que há uma tendência de desaparecimento nos registros de novos radioamadores.

Histograma de registros de estação por
ano.

Gostaria de especular sobre algumas tendências curiosas:

O radioamadorismo tem futuro no Brasil?

Ainda me é um pouco estranho que pareça haver pessoas mais experientes do que novatos no ar. Apesar disso, se a minha metodologia e os dados levantados estiverem corretos, então somos obrigados a concluir que, embora não haja um número muito grande de radioamadores no Brasil proporcionalmente à população, o interesse pela licença parece ter se mantido constante.

Embora o Sudeste, Sul e alguns estados do Nordeste concentrem o maior número de radioamadores, me parece que há poucos justamente em estados menos densamente populados, onde o serviço fornecido pelo radioamador em situações de emergência, ou como ponte de contato com o mundo, poderia ser ainda mais valioso. Presumivelmente, deve haver também menos estrutura, como torres repetidoras, nesses locais. É claro que isso pode ser mitigado pelo uso de frequências, como os 11m ou 20m, cujas propriedades naturais podem propagá-las até mesmo para outros locais do mundo. Entretanto, essas bandas são menos amigáveis para o iniciante tanto do ponto de vista do custo, quanto da facilidade de operação: é muito comum que se comece, como eu mesmo estou começando, por exemplo com o uso de HTs (hand talks, ou rádios móveis).

O estudo estatístico do professor Ricardo da Silva Benedito PY2QB (UFABC) aborda essa questão com uma métrica interessante: o número de estações de radioamador por 100 mil habitantes é relativamente maior em uma série de estados menos populosos. O estudo especula que isso pode indicar que há uma cultura de radioamadorismo mais bem difundida nessas regiões, o que pode estar relacionado ao fato levantado acima de que esses estados são menos densamente populados. Vale a pena ler o material, que vai muito além desta pequena análise que realizei, incidindo inclusive sobre a importante questão da proporção desigual de homens (93%) e mulheres (apenas 7%) no hobby.

Uma pergunta que me faço desde que iniciei o processo para tirar minha licença e que me fiz mais agudamente durante essa breve pesquisa foi sobre como poderíamos popularizar mais a atividade do radioamadorismo. Quais são as barreiras de entrada? Me parece que

são fatores que poderiam explicar a baixa adesão ao hobby de radioamador. Por exemplo, conheci pessoas em grupos de trilha que têm rádios móveis como meu Baofeng, mas restringem seu uso à trilha e à comunicação simplex. Não conhecem as associações de radioamadores, ou diferentes bandas e suas características de uso, nem mesmo como programar o rádio para ativação de uma repetidora, que poderia ser útil em certos locais bastante frequentados pelos trilheiros. Esse seria um dos públicos ideais para se atrair ao radioamadorismo: pessoas motivadas a aprender e que teriam uma aplicação prática dos conhecimentos e normas desse serviço.

Hoje mesmo estava escutando a uma transmissão no YouTube do radioamador Alexandre PU2YPO, em QSO – ou seja, uma conversa – com um senhor de Três Corações, MG. Esse senhor, Zé Mauro Braz PY4JMB, é deficiente visual e uma de suas formas de comunicação com o mundo é justamente o rádio, que o permite conhecer pessoas de longe e prestar informações quando chamado. Essa anedota representa bem a comunidade dos radioamadores: pessoas abertas, comunicativas e com vontade de se conectar umas com as outras para compartilhar interesses em comum. Se uma classe tão pequena quanto a dos radioamadores consegue manter uma infraestrutura não só física, mas também comunitária, não seriam eles capazes de expandir ainda mais essa atividade para novas pessoas que, apesar de não a conhecerem, ficariam fascinadas com sua riqueza e possibilidades?


Obrigado pela leitura! Ficou curioso para se tornar um radioamador? Fique de olho nesse blog, porque estou preparando um material para introduzir o radioamadorismo aos trilheiros.


Anexo: obtendo os dados de todos os indicativos

Para estimar a idade dos radioamadores no Brasil, decidi encontrar os anos de primeiro registro das estações no site de consulta de indicativos da Anatel. Seria impossível pesquisar os mais de quarenta mil indicativos manualmente, portanto encontrei uma maneira programática de compilar essa informação.

Primeiramente, obtive a lista de todos os indicativos existentes baixando o arquivo ZIP disponibilizado no site de informações e dados abertos da Anatel, clicando no botão de dados abertos. Uma cópia desse arquivo está disponível aqui. Abri o CSV no meu editor de planilhas e filtrei tudo aquilo que não fosse estação de radioamador; depois disso, deletei as colunas espúrias, mantendo apenas a coluna com os indicativos. Finalmente, removi os indicativos que por algum motivo estavam repetidos, obtendo o número exato de 42.516 indicativos. Bingo!

De posse dessa informação, com algum custo e usando do método do erro e acerto, confeccionei um script em Bash para baixar os dados de cada um dos indicativos nessa longa lista:

 #!/bin/bash
 #
 # Baixa, de maneira paralelizada, informações referentes a indicativos
 # no site da Anatel.

 # Criar 50 instâncias paralelas do curl.
 N=50
 (
     for ind in $(cat indicativos-uniq-2023-01-15.txt) ; do
         ((i=i%N)); ((i++==0)) && wait
         echo "Baixando indicativo $ind"
         # Baixar a página do indicativo $ind
         curl -X POST \
              -H "Content-Type=x-www-form-urlencoded" \
              # Preencher o campo do formulário de busca com o indicativo.
              -d "pIndicativo=$ind" \
                  https://sistemas.anatel.gov.br/easp/Novo/ConsultaIndicativo/Tela.asp?acao=e \
                  -o $ind.html 2> /dev/null &
     done
 )

O processo demorou várias horas, porque houve situações em que o processo do curl falhou em baixar a página, provavelmente algum erro no servidor da Anatel; tive que reiniciar o processo algumas vezes, excluindo manualmente os indicativos já baixados.

Em seguida, notei que alguns indicativos eram especiais, ou seja, concedidos pela Anatel para uso em eventos específicos. Esse é o caso, por exemplo, de ZZ5FLORIPA. Encontrei-os com o seguinte código

 grep "9 - Especial" *.html -o | cut -d : -f 1

e excluí todas as páginas referentes a esses indicativos especiais. Ao cabo, sobraram 42.202 indicativos regulares. Agora, só restava obter o ano do primeiro registro de cada um:

 #!/bin/bash

 # Criar o arquivo CSV
 echo "ano" > anos.csv

 for indicativo in $(ls *.html) ; do
   # Encontrar as datas no arquivo
   grep -E [0-9]{2}/[0-9]{2}/[0-9]{4} -o "$indicativo" |
   # Pular a primeira data (comentário no HTML)
   tail +2 |
   # Cortar apenas os anos e ordená-los
   cut -d / -f 3 | sort |
   # Retornar primeira linha (ano mais antigo)
   sed -n 1p >> anos.csv ;
 done

Como havia uma data usada em documentação em um comentário no HTML da página, foi necessário pular essa primeira data; só depois é que o script isola os anos, os ordena, de modo que o mais antigo esteja na primeira linha e retorna exatamente essa linha. Assim, se o meu código estiver todo correto, obtivemos então os anos de primeiro registro de estação para cada indicativo na base de dados da Anatel.

O arquivo com os anos foi então alimentado no seguinte script em R

 require(ggplot2)

 dados <- read.csv("anos.csv")
 contagem <- as.data.frame(table(dados$ano))

 ggplot(contagem, aes(x=Var1, y=Freq)) +
     geom_bar(stat="identity") +
     geom_text(aes(label=Freq), vjust=-1) +
     labs(title="Número de primeiros registros de estação por indicativo",
          x="Ano",
          y="Primeiros registros") +
     theme_minimal() +
     theme(panel.background = element_blank(),
           panel.grid.major.x = element_blank())

que gerou o gráfico apresentado mais acima.