Tá na Ponta da Língua: como a Psicolinguística explica seu esquecimento

by Rafael Beraldo

Este texto foi escrito como trabalho de divulgação científica para a matéria de Psicolinguística da pós-graduação em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Unicamp, para o professor Thiago Oliveira da Motta Sampaio.


Deve ter sido há algumas terças-feiras, voltando do supermercado à pé, passei por algo que fez minha espinha gelar. Ouvi alguém chamar, “Rafael!”, e quando vi quem era, tratava-se do corretor de imóveis que havia me mostrado alguns apartamentos três ou quatro meses atrás. Imediatamente me lembrei de quem era, bem como podia lembrar dos locais que havíamos visitado e alguns comentários que havia feito sobre sua vida, como por exemplo que sua filha havia acabado de fazer aniversário. A ansiedade veio, como muitos podem entender, porque com frequência me esqueço do nome de pessoas que não vejo há algum tempo. Felizmente não tive de pensar muito, pois somos xarás! Evitado o desastre de uma situação desconfortável, segui meu caminho um pouco mais leve.

O fenômeno de conhecer um conceito, porém não se lembrar da palavra, não é incomum, muito menos exclusivo dos nomes próprios. Evidência disso é a existência do verbo coisar, companheiro magnificamente útil nas situações de esquecimento. A ocorrência é definitivamente menos desagradável do que esquecer o nome de um colega que encontramos inesperadamente, porém não menos frustrante quando se intromete numa conversa. A palavra resiste e esquiva qualquer tentativa de ser recuperada, muito embora esteja “na ponta da língua”. Recorremos ao amigo com quem conversamos, nos esforçamos para explicar o seu significado, dizemos qual era a primeira letra e até mesmo recorremos à Internet, muitas vezes interrompendo a conversa. Quando finalmente nos lembramos, o alívio é geral. Mas por que isso acontece?

Conhecido por psicólogos e linguistas por “tip of the tongue” (TOT), ou “ponta da língua” (PDL) em português, esse fenômeno tem sido sistematicamente estudado pelo menos desde 1966, quando Brown e McNeill realizaram um experimento para angariar dados iniciais sobre a PDL. Desde então, um grande número de pesquisadores tem se debruçado sobre o problema. Para entender algumas das descobertas e explicações que tem sido propostas, convém entender como a Linguística e a Psicologia dialogam.

Se por um lado a Linguística estuda a estrutura das línguas, o que as torna possíveis e como se dá seu uso, a Psicologia trata das capacidades cognitivas humanas. Na interseção entre as duas ciências está a Psicolinguística, que busca entender como processamos e produzimos palavras e sentenças, de maneira a construir modelos que agreguem conhecimentos de ambas as áreas.

Uma das maneiras mais poderosas de averiguar como um sistema funciona é observar os casos nos quais ele quebra. Essa abordagem tem sido lugar comum na Psicologia. Veja, por exemplo, a história de Phineas Gage, trabalhador ferroviário estadunidense do século XIX que sobreviveu a um acidente que lhe custou seu lóbulo frontal esquerdo, bem como produziu notáveis mudanças em sua personalidade. As consequências de seu dano cerebral permitiram avançar a discussão sobre a hipótese da localização de funções no cérebro. O mesmo princípio se aplica na Psicolinguística: com frequência, pesquisadores projetam experimentos usando fenômenos conhecidos sobre o funcionamento do cérebro e da língua para induzir participantes ao erro, confundi-los com sentidos ambíguos, ou pedir que resolvam tarefas deliberadamente difíceis, tudo em nome de entender melhor a relação entre língua e cérebro.

Essas práticas experimentais têm aberto espaço para que modelos psicolinguísticos possam ser propostos, refutados ou refinados. Para entendermos, por exemplo, como se dá o acesso lexical, devemos ter uma boa ideia sobre como o léxico mental — o “dicionário mental” que codifica palavras, suas representações fonológicas e sentidos — se organiza. Essa investigação pode se dar de várias maneiras. Uma delas explora um fenômeno cognitivo conhecido como priming.

Ao ler ou ouvir, os seres humanos levam um determinado tempo para recuperar a palavra em questão, uma vez que o estímulo deve ser transformado em fonemas — as unidades fundamentais de som que compõe uma determinada palavra — e esse encadeamento de fonemas deve ser comparado com o léxico que conhecemos, o que então nos levará ao seu significado. Em experimentos conhecidos como decisão lexical, nos quais os participantes leem ou ouvem uma palavra e devem decidir se ela pertence ou não à sua língua, pesquisadores verificaram que palavras mais frequentes, como casa, são processadas mais rapidamente. Essa facilidade indica a existência de algum tipo de mecanismo de reforço dos caminhos mentais percorridos mais frequentemente. Como é de se esperar, palavras menos frequentes, como sexteto, são recuperadas mais lentamente. Por outro lado, quando um falante de português vê ou ouve uma palavra em checo, o tempo de processamento é o menor de todos, indicando que em um instante o cérebro comparou os sons recebidos com o léxico mental e descartou a possibilidade de ser alguma palavra conhecida, nem se dando ao trabalho de tentar recuperar seu sentido.

É possível, no entanto, diminuir esse tempo de processamento ao apresentar uma palavra relacionada, conhecida como prime, antes da palavra-alvo. Assim, é constado que, ao ouvir guitarra, o participante apresentará um tempo de ativação consideravelmente menor para piano. Isso indica que, no léxico mental, palavras semanticamente relacionadas estão conectadas. Esse fenômeno não se limita, entretanto, ao sentido: o mesmo efeito se verifica para formas (c4s4 e casa) e sons (chá e ).

Se a compreensão é realizada em estágios, o mesmo acontece na tarefa da produção de palavras. O processo começa com uma representação mental do conceito do que se quer dizer. Um lema, a representação mental da palavra que contém as informações gramaticais e de sentido, é então selecionado. Após isso, o conjunto ordenado de sons associado ao lema é recuperado e os sinais correspondentes são enviados ao aparelho da fala. É notável que a conexão entre uma palavra e o seu sentido raramente é enfraquecida; no entanto, com alguma frequência, falhamos em recuperar sua fonologia, causando o estado da PDL. De acordo com o modelo do déficit de transmissão, uma vez que a força entre uma palavra e sua representação fonológica pode variar, três fatores explicam a ocorrência da PDL: 1) a frequência da palavra — palavras de baixa frequência são mais afetadas, 2) o uso não recente e 3) a idade do falante. Por outro lado, apresentar a primeira sílaba da palavra que se busca tem o mesmo efeito de priming discutido acima, ajudando em sua recuperação. Tente se lembrar disso da próxima vez que você for pego com a sensação de que uma palavra está “na ponta da língua”.