Durante as férias, estava olhando alguns livros na estante de história de do meu sebo favorito, quando encontrei um livro de H.G. Wells intitulado A Construção do Mundo, uma tradução que não faz jus ao título original, Work, Wealth and Happiness of Mankind. Uma rápida folheada me despertou interesse pelo livro de 1935, que em certo momento discutia locomotivas e barcos a vapor. Passados alguns dias, voltei ao sebo e comprei o tal livro por dez reais.
H.G. Wells foi o escritor de obras notórias como Guerra dos Mundos e A Máquina do Tempo e um homem de ciências, com treinamento em biologia. Antes da publicação de A Construção do Mundo, publicou uma História Universal e uma Ciência da Vida. Sobre a sua História, ele diz em A Construção do Mundo (a grafia original é mantida):
A minha Historia Universal fornece um excelente exemplo do modo como se pode levar o leitor adulto a corrigir as deformações de visão produzidas pelo habito e pratica escolares. Embora tenha logrado uma enorme saida, essa obra não foi planejada e escrita para o publico. Concebeu-a o autor como um simples livro didático.
[…]
Ninguem, mais do que ele proprio [Wells, o autor da História], se espantou com a grande aceitação popular de sua obra. Foi dormir simples reformador educacional e acordou um acontecimento de livraria. Verificou que existia no mundo um imenso publico mal satisfeito com a historia aprendida nos colegios e ansioso exatamente pelo que a Historia Universal prometia ser — um legivel e explicito sumario da aventura humana.
Duas páginas depois, Wells continua:
[…] O segundo trabalho feito foi o escorço da Biologia. Houve razões para dar ao livro o nome Ciencia da Vida. A base da educação do autor havia sido biologica e vivo sempre o interesse que sentia pelo assunto, mas a massa de conhecimentos acumuluados depois dos seus dias de estudante impunha-lhe a necessidade de alta assistencia. Encontrou-a em seu amigo Julian Huxley, neto do grande Huxley e tambem em seu proprio filho, G.P. Wells. Juntos produziram os tres um resumo do que o homem sabe a respeito do seu corpo e e de sua mente, da origem e evolução da vida, do onímodo espetaculo das coisas vivas na terra e no mar, das principais tendencias e correntes do pensamento psicologico e por fim da peculiar biologia da humanidade. A publicação da Ciencia da Vida coroou o trabalho de dois anos de ardua colaboração, e permitiu o empreendimento do mais difícil — este escorço de Economia, esta descrição popular do comercio e do trabalho, do toma-lá-dá-cá dessa estranha e singular especie de creaturas que somos nós.
O projeto de Wells eram esses três livros — um sobre História, outro sobre Biologia e um sobre Economia — a fim de permitir aos homens que compreendessem seu mundo e atuassem nele de forma consciente. Fica clara, durante o livro e nesse projeto, a orientação socialista de Wells. Pessoalmente, há tempos que não me simpatizo pela ideologia, mas a clareza de pensamento de H.G. Wells é tão profunda que não há como não admirar a ideia. Em determinado ponto do livro, o autor discute como essas três matérias, por assim dizer, estão conectadas; a história e economia humanas são produtos da biologia e a biologia das espécies tem uma história entrelaçada com a história e economia humanas.
O livro começa discutindo, portanto, sua própria história. Posteriormente, passa a discutir a história da humanidade, das especulações sobre seus primórdios até a chegada da agricultura, a formação das sociedades e, enfim, o debate grego do Realismo versus Nominalismo. De forma muito clara, Wells nos mostra como esse debate se desenvolveu ao longo do tempo e veio a desembocar no método científico, com a inversão das palavras realidade e realismo.
Jamais serei capaz de resumir a questão como Wells resumiu. Me aventuro com essa breve descrição do caso: na Grécia surge o primórdio do que o autor chama de “pensamento dirigido”, em oposição ao “pensamento do cerebro primitivo”, ou seja, o pensamento de uma época onde o ser humano não dispunha de “nenhum elemento critico que indague: ‘Mas será isto certo? Será verdade?’”. Os gregos foram os primeiros, segundo o livro, a se fazerem essas perguntas. Havia, no entanto, um embate a ser resolvido:
[…] ha tres modos de julgar as palavras; podemos julga-las mais verdadeiras que o fato [pense em platonismo], menos verdadeiras que o fato, ou exatas, isto é, coincidindo com o fato. Para o Realista a palavra era mais verdadeira que o fato; para o Nominalista o fato era mais verdadeiro que a palavra.
E, por mais espanto que isso cause, o Realismo era a visão mais aceita na Grécia, e não só na Grécia, como durante quase toda a Idade Média. Durante todo esse tempo — desde os filósofos gregos até hoje — essa discussão prossegue. O platonismo, ou seja, a ideia de que vivemos em um mundo imperfeito, sombra de um mundo ideal, encaixa-se muito bem com a cisão terra/céu da Igreja Católica, e melhor ainda com algumas concepções, como aquela de que somos feitos à imagem e semelhança de um ser perfeito, Deus, embora nós mesmos sejamos imperfeitos.
Se, de fato, as palavras fossem mais reais que a realidade, e apenas a lógica nos permitisse alcançar um entendimento pleno do mundo, a experiência — o método empírico — era besteira completa. Mas desde o fim da Idade Média o pensamento científico, autocrítico, cético e experimental ganhou força e modificou nosso mundo.
Desse ponto, Wells prossegue dando um rápido panorama da história da ciência. Suas opiniões sobre a ciência são extremamente afinadas com o que eu acredito que ela seja: não uma busca pela Verdade Absoluta, mas uma constante revisão de nossas pequenas verdades, rigorosamente escolhidas por um método que aceita calorosamente qualquer ideia testada, não aquelas que mais gostamos.
A logica podia provar certa coisa; mas a experimentação tinha de dizer se era assim. “Observa, experimenta, registra, especula logicamente, experimenta a tua especulação, confirma-a ou corrije-a, comunica-a a outros investigadores, ouve as suas comunicações, compara-as, discute-as, logicamente, estabelece o que ficar comprovado”, e assim por diante; para todos os propositos praticos, este é o metodo da ciencia.
Mas…
A libertação do espirito humano das prediposições Realisticas permanece incompleta. A humanidade ainda acreditava, até um seculo atrás, na fixidez das especies animais e vegetais — que se supunham variar em torno de um tipo perfeito; e ha apenas vinte e tantos anos admitia a similaridade absoluta dos atomos; e na politica internacional até hoje o Realismo ainda domina por completo. Esse erro intelectual dorme na raiz dos maiores peris que ameaçam a especie humana. Os corações dos homens podem estar no logar certo, as as pobres cabeças dos homens acham-se mergulhadas no nevoeiro dos nomes magicos. Porque é claro que um nominalista que considera a palavra “França” apenas como o nome designador de uma grande area geografica de ais e tais caracteristicas climatericas e sociais e cerca de quarenta milhões de seres humanos das mais diversas qualidades (muitos deles nem sequer falando o francês), ha de ver a politica internacional de um angulo inteiramente diverso do de um Realista que encontra na palavra França algo mais real e vital do que qualquer das coisas ou individuos que contribuem para o conjunto daquela idea. “Russia” é outro termo magico para os Realistas; “Mãe Índia”, outro; outro é “Mãe Patria”, seja qual for a patria. Desde que em nossas escolas não ensinamos a significação dessas palavras — nominalista e Realista — nem damos qualquer especie de treino ao pensamento analitico, seremos nominalistas ou Realistas segundo o nosso temperamento ou a nossa sorte.
Wells prossegue, discutindo como a ciência nada tem a ver com dogmas ou tradição e como, frequentemente, a mídia entende isso ao avesso, dizendo que um ou outro cientista “derrubou um dogma da ciência”. Discute como as universidades tiveram uma aceitação muito ruim da ciência, uma vez que eram tradicionais, e como impuseram graus de conhecimento da ciência — que existem até hoje, e se chamam Bacharel, Mestre e Doutor.
É fascinante como Wells consegue, nesse livro de 1935, ensinar as coisas de forma tão bem entrelaçadas, coisa que minha educação, meio século depois, não conseguiu. O autor britânico compreendia a necessidade de tornar as coisas não só cotidianas como relevantes; fazia isso tão bem, que as partes sobre a conquista das substâncias — parte na qual ele discorre até mesmo sobre os vários tipos de ferro e aço e como sua invenção foi fundamental para o avanço em outras áreas — e sobre a conquista da força (diríamos energia hoje em dia) são extremamente saborosas.
Menti no título desse post; ainda não li o livro, mas estou na metade. Parei na parte em que Wells discute a história da conquista da distância. A máquina a vapor ainda era o grande meio de transporte, e as máquinas a Diesel estavam começando a serem testadas. Vejam esses trechos, sobre o uso de energia:
O Dr. Herbert Levenstein fala da era da força-carvão e da força-petroleo, ou “era da força fossil”, como mero incidente na evolução econômica da humanidade. “Terá durado, quando chegar ao fim, menos tempo que a ocupação moura na Espanha”.
Agora, com a corrente eletrica descoberta e a sua disposição, o homem não tem dificuldades em transmitir a força do moinho de vento ou da roda d’agua aos mais distantes pontos de aplicação.
[…]
Haverá ainda possibilidades não desenvolvidas de se extrair força dos movimentos do ar ou da agua? Um exaustivo Livro da Força teria de resumir a fase atual do problema, ainda não resolvido, da utilização da energia das marés. E descreveria um ou dois dos estranhos e até agora impraticaveis aparelhos para a captura direta da energia radiante do sol. No Instituto Kaiser Wilhelm, em Dahlem, o Dr. Lange fez funcionar um pequeno motor eletrico por meio da luz solar, fazendo-a passar através de uma celula foto-eletrica. Esse pequeno motor do Dr. Lange talvez venha a figurar nas historias economicas do futuro como a maquina a vapor de Hero figura nas de hoje.
As previsões de Wells soam tão fantásticas que é difícil se dar conta de que muitas delas se realizaram. O método de Wells ao escrever seu livro — não contar a história dos reis e Estados, mas das ideias e conquistas da humanidade — produz um efeito maravilhoso de te jogar no meio dessa verdadeira aventura.
Para finalizar, chamo atenção para o terceiro parágrafo citado acima, no qual o autor fala sobre um Livro da Força. Wells frequentemente fala de uma enciclopédia eternamente revisada, expandida, para incluir toda a história do progresso, invenções e ideias humanas, um livro de consultas, a Ciência do Trabalho e da Riqueza, que aparece em trechos como:
Uma enciclopedica Ciencia do Trabalho e da Riqueza, com ilimitadas ilustrações, contaria toda a historia da via ferrea, e encenaria os seus mais vivos episodios. Mostraria, por meio de mapas feitos para cada periodo, o modo como as estradas de ferro se espalharam, á guisa de nervos em um embrião em desenvolvimento.
Fico muito feliz em ver que Wells estava certo.